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domingo, 26 de setembro de 2010

os ponteiros do almoço

— A corda a corda a corda

E os ponteiros tombam já quase mortos

— Acorda, não vê o cheiro do café?

(o sabiá entoou seu canto e varreu
o sono dos dentes).

— Dê corda no relógio e traga a galinha

O almoço trará alegria
cozido e gente…
Farofa cerveja pimenta e gente

— Traz a faca do cabo branco

Os olhos sem direção
as penas voando
o sangue encarnando as mãos

— A bacia a bacia a bacia

(o almoço se banhando)
E o café aquecendo a espera
(o dia)

— Passem o açúcar pro menino!

Gatos passeiam ao redor da mesa

(O sabiá não sabe o que canta).
Os ponteiros já quase anunciam a hora da alegria

Estão todos acordados agora

— Desligue a tevê os outros estão chegando

É hora do forró xote baião

(O sabiá se assusta e emudece o canto —
não há dor ou alívio).

— Desçam daí, cristo do céu

Gente pequena provando goiabas —
o sabor primevo de roubar frutas do pé

Frutas maduras pisadas por pés descalços
o nojo na face e sementes entre os dedos

Gritaria gri-ta-ri-a
o almoço trouxe gritaria
zombaria e reencontros
como em álbuns de fotografia

Outras mãos pequenas arquitetam casas e mobílias
jogos de adivinhação

— Mande ela tirar isso da boca

Peças de um quebra-cabeça que dói
e mais peças
Uma imagem cheia de montanhas e frio
Longe, bem longe, onde há frio.

Os gatos teimam escondidos
discretos

— Sai de cima desse gato, criatura

(que continuam esperando migalhas e atenção)

— Liguem a tevê

Zoada e confusão
cores e bichos peludos
xote e baião
e o roçar de talheres nos pratos

Conversa longa e gestos de mãos
e comida sobrando entre os dentes…
(festa no salão - conversarias)
Nenhum almoço jamais traria tanta alegria.

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

a procura

esvaziando os bolsos
à procura de balas

encarapuçando os pulsos
à procura de dor

o doutor alerta:
"precisamos nos esvaziar
daquilo que nos deixa vazio."

Sábio. Como ele sabe
nos deixar vazio...

Mas alumiando
a fissura
se chega à cura.

Lancemo-nos
portanto
à procura

como uma fagulha
em mergulho profundo

("preciso me esvaziar
daquilo que me deixa vazio.")

Eis a cura.

sábado, 11 de setembro de 2010

Ramus

Nos ramos,
os nossos lírios
e rosas,


as rezas
e relvas
que nos habitam
os terrenos mais
baldios.

Ao pé daquela que dorme,
tantas vezes
deixei-me adormecer
ouvindo estórias
compridas que não acabam mais.


E nos ramos de hoje,
os domingos de sóis


(um pouco de nós).


Nos ramos,
também as gotas
da minúscula chuva
(plagiando orvalhos).

 Em nossos quintais,
uns sonhos
voaram sem rumo,
estão sonâmbulos,
presos em cristais;


outros deslizam
entre os dedos
e se deixam escorrer
entre os ramos,


voam para o longe.
Mas, quando querem,
voltam aos nossos
umbrais
o mais depressa
que conseguem.




Ao pé desta que chora,
me vejo ofertando flores;
me espelho em seus líquidos amores
e sou de sua voz
um fiel mensageiro.


E nos ramos antigos,
os nossos recentes vãos;

as cantigas:
nossas voltas e idas;

os salmos:
cânticos serenos;


os filhos e a fina matéria:
tão pura e cristalina

quanto a memória
desta que a todos ilumina.



Ao pé daquela que dorme,
andei por vezes cabisbaixo,
esperando que me trouxessem
aquele algo morno e ingênuo
que vai ficando no caminho.
(E sua beleza).


Mas sei que um dia andarei sozinho
esperando
as minhas rosas
e lírios;
as rezas, as horas sobre a mesa
e os Ramos
desta ida que também 
é volta.