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terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Maceió

Foto - Edilane Ribeiro



Esta cidade,
— toda olhos alheios —
tem cheiro e cor
de quadro antigo;
tem o brilho enlatado
e esquecido
nas arestas do tempo.

Esta cidade
suspira peso. Gravidade
às avessas.

Corroída, anda
por avenidas
e pontes de idas;

em orlas ornamentais, de luas
envaidecidas.

Em suas esquinas de água,
crianças (e outras índias)
de derramados leites
vagueiam
como zumbis
à procura de leito e cruzes, pele e tinta.


São o óleo derramado na cidade. E a vontade. O gás
inodoro que permeia o ar. E o não-parar.
As crianças. Todas
somam-se marias e josés;
gracilianos e jorges. São serafins do norte...
Cristos e sereias crucificando mortes.

Esta cidade,
toda ressaca. É um mar que atrai
o que vier. Rejeita
tudo. Sobretudo,
aquilo que mais lhe tem fé.

(Oferendas e fezes
são como preces e prendas
)

Sem pressa, a cidade
olha para o horizonte:

tardes de cervejas e areias nos pés aos montes.

Por vezes barcas à deriva... E sol.

Esta cidade o que quer?
Lamber o sol ou a sola?
A maresia que
cola?

A oca
dormida?

Ou o acaso
cabaré?

Lambe lodo e esmolas.
Folclore e terra preta.

Lambe fálicas maletas. E todo o falaz governo.

E lambe até
o pau de quem lho oferecer. É só pagar
se quiser foder.

domingo, 25 de janeiro de 2009

No divã

Minaz olhar
penetra
à surdina
o divã
O dia vaga solene pela manhã

Mordaz palavra
do não
em folha se abre
em livro
o corte fechado

a carta na mão

Os olhos me caem
e sinto dormências
nos pés

Num instante

meus braços
sem postos
meu rosto sem fé:

Não vejo o relógio — o dia se foi

A manhã

não vem.

Um dia

Um dia ela veio

ressentida. Pálida.



Nos olhos, uma lassidão

de bocas e

lascívia.



Seu olhar, no mais

se permitia

um ar

austero sobre o chão.




Era triste o seu olhar

e pouco dizia.

Mas tão bela era

a morte em seu rosto,

que tanta vida e furor

brotavam-lhe na face

suada de gozo,

deixando vestígios de um esquecido

gosto:

o de um antigo pudor ainda preso

em seus serenos lábios

adormecidos e envenenados de medo.



Permitia-se então uma luz cega:

uma imóvel espera:

ver enfim o raiar do dia.

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Da janela: rosas e espinhos


ainda lembro daquela imagem:


a roseira do jardim sobrando
e tendo asas sobre a grade

ofertando pétalas e espinhos
- perfumes -
para o quarto de dormir.


o quarto hoje pequeno
a roseira morreu.



mas quando
da janela
debruçavam-se sobre

o quarto
rosas e espinhos

as tardes mornas e claras
cobriam-se com

a calma e o brilho
dos dias eternos

dias de se construírem
tetos
sombras acolhedoras
para os dias
de calor e medo


mas a janela não abre
e o quarto não está vazio.
não há mais rosas ou espinhos.


o menino que andava aberto o peito
e sem sandálias

abria todas as janelas
e postava-se como num castelo

(dono do mistério
que há na face
escondida
de quem descobre
num só instante
a vida)

o castelo continua esguio
porém deserto

as torres
os segredos
perambulam sonolentos
o tempo de agora

e nesse castelo de sonhos
nesta hora
o menino
retorna ao quarto

que novamente o acolhe

com rosas e espinhos.


mas a janela não se abre
e o quarto não está vazio:


ainda há rosas e espinhos.




Dois éons e meio

(Ele disse “éons”
,
e antes nem era verbo
;
antes do regresso, o parto)
.

E sim,
o feno venoso
tolda a fome do animal manco.

O animal possui um nimbo
e seu olhar
sobre o chão
traz algo de petrificada paciência.



Coisifica.

E lá deixa falida a carne
(sobre a terra ensanguentada e sedenta de luz)

Ele (o animal) voltou a ser cosmos
como queria seu pai.

Mas é tempo outro.
É de ouro o martelo
e há vendas nos olhos vendidos
sob lápides antigas

e preços modernos.

Há ainda uma nuvem vagando teto
enquanto insetos sobrevoam a luz pretendida.



Serenidade e profusão de
gases.

O tempo e sua matéria se troçam

e se des

mat

erial



i

zam

em dez contados segundos.

domingo, 11 de janeiro de 2009

Nunca mais

cais e nada

segredando vozes ao relento
entre ondas e conchas, vou

Navio que volta

traz

end
o

cortejo

uma bala
no bolso do pobre homem
— falsa esperança —

(
flash de olhos

amor

tecidos

)

a doce bala cola na embalagem envelhecida,
úmida.
Sor

vida
de ontem.

Maciez e gozo

: menino no cais:

duvida
e duvidando espera um pouco mais a vinda
de outras varridas almas
socorrer-lhe a pena
ou lançá-lo como pedra
ao
mar
(como um sopro pelas costas, um vento à janela)

ou
de volta ao cais?...

: “nunca mais”.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

eu nuvem

Uma pena solta

uma nuvem (seus desenhos)

divide caminhos

e pena


uma parte [pena]

pousa em

mim

outra voa por aí

sábado, 3 de janeiro de 2009

Um sempre jardim


Tenho um jardim
Que me visita
Sempre quando danço aquela valsa.

Há nele alguns espinhos,
Alguma farpa,
Sempre quando teimo aquela farsa;

Há também uma flor que se abre
Sempre quando em mim cabe
Mais um bocado de mim.


Nesse jardim só água
Há roseira
E céu.

Há um ventre,
Terra fértil,
Perfume de jasmim.


Há um templo onde pousam
Mariposas e querubins.


Esse jardim me vem
E é dia.
São lágrimas orvalhadas
Nas rosas
Mas são de alegria.

É um jardim que me toma o braço e não me deixa partir

Para um nunca voltar;
Para um sempre jardim.

quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

Auto-retrato



Eu quis me ver
Quis me ver de lado
Me ver inteiro e despedaçado
Ver meus olhos sem espelho


Eu quis me ver auto-retrato

Eu quis me ver
Quis ser espectro de mim
De minha fuligem
Quis rever minha vertigem
Vertida em mim

Eu quis me ver
Nas coisas ao meu lado
Coisas belas e detestáveis
Quis que elas me fossem de verdade

Eu quis me ver
Em partes partido
Por
todos
os
lados

em cacos de vidro
em muros e grades

Eu quis me ver
Casa de mim
Em cada janela
Aberta ou fechada


Quis ser eu a cortina

Quis ser a fachada

ou o jardim

Mas nem sol havia nem flor nem luz
nem nada




Escher - "Auto-retrato"