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terça-feira, 31 de março de 2009

Olhos pela fechadura

Eu queria cantar do amor
a sua roupa despida


a sua pele, seus pêlos
a sua carne-viva

Cantar sua abertura de portas
(voltas e idas)

Eu queria cantar do amor
a sua fornalha sem pele


a sua marca, sua ferida

em sua face,
a profunda secura

Eu queria cantar do amor
a sua mais secreta chave

olhos pela fechadura

Mas só posso dele
cantar seu nome

e o charme
de seu fiel disfarce


(enquanto a chama dura)

sexta-feira, 27 de março de 2009

Apenas uma cantiga

Uma tarde cantada
uma cantiga
de cigarras

Uma formiga
trabalha

E o sol castiga
a todos

A cantiga
tem hora certa
(fim da tarde)
e hora finda
(fim da vida).

O sol se esvai
no horizonte indo


E a Formiga
descansa,
volta ao lar

A cantiga
já não se ouve


É fim de tarde,
chega a noite.

A Cigarra
cantou sua alma
sua dor foi ouvida

Sua vida
durou o instante
de uma cantiga.

segunda-feira, 23 de março de 2009

Um alvo

Em cinzas,
um alvo
deixa-se acertar.

Das cinzas,

o alvo
divaga
e voa
em brancas nuvens,
solto no ar.

segunda-feira, 16 de março de 2009

Trem das horas

É um trem de águas turvas
O trem que se demora
É alguém acordando
Enquanto somam-se as horas

É um trem de pouca força
A coisa que não pára
É o bem que me deixa
No rosto uma face sem mágoa

É um trem de muitos medos
O desejo que me fala
É o que tem de mais violento
Na pele das palavras

É um trem de vagões abertos
A ferida que não sara
É um trem que traz a poeira

Na bagagem que não larga




É um trem de amores outros
O instante em que já houve
O tempo de haver promessas
O tempo de haver horrores

É um trem de tempos idos
Nos trilhos das horas
O trem que agora parte
O trem que não retorna

segunda-feira, 2 de março de 2009

Oeste

Oeste
este verso.


Somos todos deserto em água.
Espinhos de dentro pra fora.


Ao sul, todos os patos.
O horizonte aponta sua linha cortante.


Somos todos divisa. E ventre.
Onde toda morte é passo

e todo passo, corte.

Duas linhas entre horas.

A primeira, de antes, fica.
Deixa-se suar pelo veneno.


A outra, parte, segue
o torto vento.


A oeste este verso.

Parte como que voltando
de longa viagem.


Amanhã
(diz o tempo)
irá chover.


O oeste é este perto.

Estamos todos submersos.


Na divisa, entre os versos;
Na esquina de quem somos.

domingo, 1 de março de 2009

Castelo de Baralho

Sinto-me livre: sinto-me só;
Apenas só me sinto livre
Não vivendo apenas só, somente só vivendo,
Livre de quem não vive: apenas pó.

Dos restos, dos versos e do apelo,
Fazem-nos homens das sombras,
Do medo, do ego, ou de mais um verso,
Mares diversos, o avesso que sou.

Sonham em si, disritmia,
Os sonhos e sons de todos os lados,
Que nos braços magros, em teu seio, ardiam,
Em forte brasa — um mar por outros, remado.

Que outros o digam, o que te digo hoje,
Em tempos, há tempos, a que tempo quiseres:
Se acaso puderes…
Livre-se de vez desta infinita ausência de noite.



Maceió, 1999.