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quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Aroma e tato

Sob a pele, manchas de tinta
Tua única pele revolvida
No vermelho querendo vida

Em tardes de poeira
E assentos
Quando mangueiras em ruas de barro
Querem chuva,
Escapa-te outro tempo
Que em silêncio segreda
O pêndulo de antigos
Erros.

Sobre a tinta querendo sangue
A poeira se assenta
E encorpa
Aroma e tato

E sutil reveste
A pele já escassa —
Dormida.

Agora tu sabes o que te preenche
E a cor e o cheiro.
Não sabes da dor,
Do silêncio,
Do nome que há por dentro
Do desejo sem nome
(Tormento
Presente
De antes e sempre)

Agora tu sentes.

Mas agora teu nome é Verbo
E é Palavra o que te veste.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Lousar

ouso agora tocar o poema inacabado
sem a demora do depois
sem a espera de um verso inconcluso
que beire sempre a outra margem

(a obscura
e ínfima
de lâmina

curva
que
recorta
e espalha
seus sons

e dogmas
em páginas
reviradas)

ouso assim tocar a pele espessa do poema
e rugosa
pois se tocada
sua forma revigora

sua forma
se estende afora o mar
e orna seus presentes
quilômetros

distantes
lá onde
ouve-se o mar

e se tocados o pano e a linha
tesouros
cortarão caminhos
entre sombras e silêncios
no canto das palavras
já no sem dizer… (palavra)

mas se sobre a mesa
a outra página
da margem esquecida
se envaidece
e lacrimeja
abre-lhe outra ferida

um verso já sem começo
qualquer coisa já sem vida

Outro lado



A agulha pede o outro lado do vinil


          Ruídos são preces
     para quem perdeu o trem

Para quem o caminho se torna mais longo
                           o consolo pode estar
                    nas folhas do outono

      No outro lado do tombo

(
O outro lado do vinil é ainda mais sombrio
— porque desconhecido —
Por isso os ruídos e a espera
)


E aquela tal nostalgia já não faz sentido
O trem se foi
             e ruídos podem ser pássaros
ou ecos de vozes que já não se ouvem
que se ficam guardadas
como conchas e o som do mar infinito


Mas para quem o trem traz conforto e mão amiga
a espera é como bagagem que não se larga
como o pulso que convida o resto do corpo
a bater uma batida sempre exata
uma batida que traga ruídos e fumaça








João Barcelos - "Maria Fumaça"

Até a próxima canção

Eu espero
espero
e canto
meu canto cego
sem medo do escuro
me fazendo muro pros meus gatos

Eu espero
Eu espero
o retrato sair do papel
beijar-me a face
tornar-se nuvem
retirar seu véu

Eu espero, espero e marco o tempo
O tempo de sala
meu tempo em novela


Eu espero
espero meu verso se desprender
de ilhas
de limbos
de alçapões aguados
de bandeiras atiradas ao vento
na cinza das horas
no tormento
na rua dos cataventos…

Eu espero
E espero uma canção
que espera a si própria
enquanto espero e espero…

No passo

Sou mais uma vez agora
o que antes andava andarilho.
Sou a demora do cansaço,
o suor que sufoca e o rumor
das coisas sem nome.
Sou agora o vidente de vidas passadas.

Sou quem passa nos pedregulhos perdido
e quem espalha as folhas secas sem lágrima.

Sou agora o espasmo seco no canto do galo;
sou aquela velha foto:
a sede no olhar esquecido.
Sou o vestido na pele macia;

a mobília da casa repleta de laços.

Sou a mesa posta e os lugares na mesa.
Sou tudo isso e mais agora
tudo o que se espera do lisonjeiro trato.

No mais, no passo de um passageiro.

O Baile

Os pés descalços e o baile no olhar de outros
a luz que vem cegando

o frio que toma o corpo
e o corpo que se divide

em voláteis encantos

(a bebida quando aquece
também calafria

pois assim se bandeja corvo,

assim que se rompe o dia).


assim baila o corpo
e cintila na lousa o pouso da maresia.

domingo, 7 de dezembro de 2008

Andando em círculos

Para Erinha Ribeiro

Te ando pelos becos,
nas esquinas dos desejos,
avenidas, pontes e ruas...
Desertas pedras do silêncio,
dos segredos encruzilhados,
em dedos, em mãos,
esparramados.

Te ando rondando o espaço,
seguindo o rumo dos passos;
te ando sinuoso,
insinuando laços.

Te ando te ando te ando...
E de tanto andar-te
me tenho andado
em mim mesmo
procurando meus passos.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Temer idade

Cacos de sim
Mão
Barca
Morte



O norte
Espreita oriente vindo
Volta
Corre

Corre-dor

chamas


Encobrem o leito leviano
Explode carne de vidro o dentro corte
Soprano
Abana

Cacos de
Sim Mão Barca Morte Mão
Abre fenda
Queda
Tenta
Sangra Falta
Sangue à vista
(A aqui a vista
Salta foge
Retorce ali aqui
A lista a sorte)

A mão
Sim
Morre

Barca louca mansa brasa — tinta.


segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

AS

Para Gláucia Machado

É cedo

...........É como pluma burilando
..................................................o ar........
..............Voltas e dança..........

Tempode
c a n t a r

........................................
Sem previsões

...............Astros ou crenças......................

É sempre cedo

////////////É hora já\\\\\\\\

.............................................Tarda tudo..........
///////////////////////O que a tudo
..............................................escapa..........

----------Embarga palmos-----------

Espaços
...........................................................e
lar.........

O mais, nem cá nem temos
Tempo de temer

\\\\\\\\Somos de viajar////////

\/\/\/\/\/\/\/\/\/\/\/\/\Somos de colher
====================Porque há semente

Antes de haver
--------------A coisa ----------------

.........E coisa é palavra de olhos fechados.........


É
tamm o cheiro

////////////////Guardado nos erros.........


No bolso
\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\\Na pele.......

////////No verso de olhos e lentes////////


No calcanhar




...///\\\...A coisa há...///\\\...

.

Minha casa

eis que me vejo no afago
na casa repartida
em tralhas poeiras e assentos

eis que me contento
quando me vejo
outro
em toda a casa

(pele sobre a ferida)



eis que assim me vejo

e não suporto o peso
nos ombros
quanto teimo
casa sem dono
casa carcomida
ferrugem
fuligem
e sopro

mas eis que também me convido

abrigo
quarto aquecido
tempo de rever lembranças

casa de sempre
casa de balanço e rede
que se deixa dormir
como esquecida

casa que me tira o peso
dos olhos turvos

e dos ombros largos

casa que me vejo
rotundo e calmo
quando enfim me lembro
da casa-retrato

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Coisas do sem-nome

sei o quanto peca a minha palavra em teus ouvidos
por vezes me deixo dizer coisas do sem-nome
coisas do já-dito

bendito sou às vezes quando dito palavras amenas e mansas
ou quando silencio no canto da boca
palavras loucas

bem ditas são as palavras
quando bebidas nos olhos e no beijo
quando proferidas em silêncio

benditas são em seus segredos
em seus abismos e desvios
quando sorvidas com desejo
ou esquecidas de seus brios


(a covarde palavra nunca te foi dita
embora arda a outra
a desvalida)


e de tantas palavras roucas
o que se ouve no fim
são as cordas as vozes
o tamborim

Terceiro milagre

"A cada milágrimas sai um milagre"
(Milágrimas - Alice Ruiz e Itamar Assumpção)

"só faz milagres quem crê que faz milagres / como transformar lágrima em canção"
(Blues do elevador - Zeca Baleiro)


Tecer um milagre
de mil lágrimas numa canção
não é apenas questão de crença.
É dádiva e trabalho.
É consumir-se por inteiro
e ver-se em metades.
É abrir o peito
E rogar uma prece
lançando
versos ao vento vão.
É esquecer-se do mudo
e cantar o mundo,
o mundo inteiro.

Tecer um milagre
de lágrimas numa canção
é mais do que estar-se só.
É estar em si
estando em todos.
É abrir a voz do mundo
e ouvir seu eco fundo
no fundo do poço.

Ouvir o canto de alguém,
longe, cantando bem,
em ecos distantes
e querer segui-lo, amante,
é amarrar-se em nós,
folgando os laços,
apertando o passo.

Pois assim, de mil lágrimas cantadas,
nasce um terceiro milagre (ainda que tarde):

uma outra canção.

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Para além da cegueira

para além do que vejo,
lanço-me flecha
(ferir o silêncio, romper o asfalto);
sinto-me pedra.
para além da queda,
ergo-me pássaro,
e passo a passo,
varro-me poeira.

para além do que vejo,
vejo o silêncio
ferir o verbo, romper concretos,
sentir-se cego.
para além da cegueira,
ergue-se um verso:
de areias e pedras,
nascem desertos.

para além do que vejo,
além, meu antiverso
(ferir o nexo, romper segredos);
sinto-me feto.

para além do vôo,
entrego-me pássaro,
e desfaço
espaços entre versos.

Tangos e fados

"Um galo sozinho não tece uma manhã"
(Tecendo a manhã - João Cabral de Melo Neto)


só agora me chega o canto do galo.
ele urge, implora verso;
outro rumo, nova faca.


(duas noites dividem o dia)

nos telhados, gatos se amam
em amor de gato;
num cinzeiro,
o esquecimento do cigarro aceso
me faz lembrar das horas,
da demora, da vida que não espera
e canta seu novo canto
num outro galo.

noutros telhados
novos urros e gemidos:
mesma vida, outro quadro.
e o tempo me grita espaço,
e me alarga, me devora
e acalanta lento meu novo canto,
meu espanto, meu silêncio.

mas eu grito, esbarro verbo.
urro gemidos e vidas
como urra o amor dos gatos.
(e as noites dividem o dia em tangos e fados).

O palhaço de olhos borrados



eis o palhaço de olhos borrados
de sorriso e lábios amarelos

de cores e lembranças

de palavras que saem trôpegas
quando sorrindo abre a boca

e engole o sorriso das crianças

eis o palhaço de olhos vermelhos
de sorriso armado e nariz pontudo

de segredos embutidos no espelho

eis o palhaço de olhos engraçados
atirando risos ao público


(extasiado e mudo -
que não percebe o risco de seu fado
)

tudo o que lhe resta agora

neste camarim empoeirado

é um retrato esquecido no bolso

imagem-estanque que lhe abre portas
sempre emolduradas na estante

trancafiadas em memórias

o palhaço de olhos borrados
eis aqui o homem que chora














(The clown - Georges Rouault - 1871-1958)

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Quero antes o agora

Quero antes o toque;
a sutileza cambaleante do tato.

Quero a pele, os poros.
Quero-me sentir refeito.

Quero agora o choque.
Quero que haja conflito.

Quero a parte que me vem aos poucos;
gota a gota o suor do corpo.

A crueza de mãos se tocando,
enquanto nada é dito.

Enquanto tudo é feito,
silêncio e suspiro.

Quero antes o agora,
o instante que se demora

No exato momento em que muito houve
na lenta passagem das horas.

Quero assim o fechar dos olhos.
A marca nas costas e na alma.

Quero a palma na pele e o arrepio.
O mamilo eriçado,

a boca tremulante
e os pêlos como pavio.

Quero agora o depois.
O olhar entreaberto,

o respiro mais discreto,
a página outra vez em branco.

O sono que vem chegando,
a canseira que se vai.

Quero agora que me vá
o medo errante

o tempo inconstante,
a coisa sem lugar.


Quero antes a virada,
a aurora, a madrugada.

Quero enovelar-me a ti
e quero estar vestido.

Mais nada.

Carnavais


Vivo em transe.

Metamorfose dissimulada — agonia;

Instantes de profundas euforias

(dependuradas em varais de saudade).

Momentos tanto de guerra

Como de conformidade.

Tédio? Melancolia?

Carnavais — fantasias...

terça-feira, 25 de novembro de 2008

São poetas

São poetas
Portas abertas para o nebuloso

Cálculo indivisível de somas e perdas

Palhas
Agulhas
Mágoas maculadas
Em perfis
De águas turvas

São poetas
Páginas concretas de espaços e versos

Pétalas que se somem quando arrancadas
E postas à brisa

São pára-quedistas
Quando bombas à deriva

São poetas

Em muros cobertos de heras

Em calhas da última chuva


Poetas e seus guarda-chuvas

duas manhãs

I


a mesa posta:

há uma maçã partida sobre a mesa.
quatro partes a dividem em duas manhãs.

uma manhã rebate o sono com vontade
rebenta num estouro febril o corpo mole

devolve o que cobriu em dia tarde
impede o avanço o sonho a morte

a outra manhã sonha dias claros
(alvos panos forram a mesa posta)

(torna-se alvo a poeira nos retratos)
limpa o quarto onde sobravam portas.



II


há uma manhã quente e de luz;
há outra que não seduz.

a manhã de luz toma a cor da outra
que nasce depois

e depois de nascida, convida
a primeira a morar na cruz.

a morada não sugere lar
lá estão sem se estar

e não se vendo olham pela janela:
não vêem o tempo que passa

(e o tempo passa devagar)

as manhãs se afastam
as janelas se fecham
e as partes partidas na mesa
não são partes da sobremesa.

primeiras horas



há no vento


bater faíscas

segredos



saudades dos quintais de outrora


onde a


vida


vivia


sem mesmo se lembrar


das horas