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sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Coisas do sem-nome

sei o quanto peca a minha palavra em teus ouvidos
por vezes me deixo dizer coisas do sem-nome
coisas do já-dito

bendito sou às vezes quando dito palavras amenas e mansas
ou quando silencio no canto da boca
palavras loucas

bem ditas são as palavras
quando bebidas nos olhos e no beijo
quando proferidas em silêncio

benditas são em seus segredos
em seus abismos e desvios
quando sorvidas com desejo
ou esquecidas de seus brios


(a covarde palavra nunca te foi dita
embora arda a outra
a desvalida)


e de tantas palavras roucas
o que se ouve no fim
são as cordas as vozes
o tamborim

Terceiro milagre

"A cada milágrimas sai um milagre"
(Milágrimas - Alice Ruiz e Itamar Assumpção)

"só faz milagres quem crê que faz milagres / como transformar lágrima em canção"
(Blues do elevador - Zeca Baleiro)


Tecer um milagre
de mil lágrimas numa canção
não é apenas questão de crença.
É dádiva e trabalho.
É consumir-se por inteiro
e ver-se em metades.
É abrir o peito
E rogar uma prece
lançando
versos ao vento vão.
É esquecer-se do mudo
e cantar o mundo,
o mundo inteiro.

Tecer um milagre
de lágrimas numa canção
é mais do que estar-se só.
É estar em si
estando em todos.
É abrir a voz do mundo
e ouvir seu eco fundo
no fundo do poço.

Ouvir o canto de alguém,
longe, cantando bem,
em ecos distantes
e querer segui-lo, amante,
é amarrar-se em nós,
folgando os laços,
apertando o passo.

Pois assim, de mil lágrimas cantadas,
nasce um terceiro milagre (ainda que tarde):

uma outra canção.

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Para além da cegueira

para além do que vejo,
lanço-me flecha
(ferir o silêncio, romper o asfalto);
sinto-me pedra.
para além da queda,
ergo-me pássaro,
e passo a passo,
varro-me poeira.

para além do que vejo,
vejo o silêncio
ferir o verbo, romper concretos,
sentir-se cego.
para além da cegueira,
ergue-se um verso:
de areias e pedras,
nascem desertos.

para além do que vejo,
além, meu antiverso
(ferir o nexo, romper segredos);
sinto-me feto.

para além do vôo,
entrego-me pássaro,
e desfaço
espaços entre versos.

Tangos e fados

"Um galo sozinho não tece uma manhã"
(Tecendo a manhã - João Cabral de Melo Neto)


só agora me chega o canto do galo.
ele urge, implora verso;
outro rumo, nova faca.


(duas noites dividem o dia)

nos telhados, gatos se amam
em amor de gato;
num cinzeiro,
o esquecimento do cigarro aceso
me faz lembrar das horas,
da demora, da vida que não espera
e canta seu novo canto
num outro galo.

noutros telhados
novos urros e gemidos:
mesma vida, outro quadro.
e o tempo me grita espaço,
e me alarga, me devora
e acalanta lento meu novo canto,
meu espanto, meu silêncio.

mas eu grito, esbarro verbo.
urro gemidos e vidas
como urra o amor dos gatos.
(e as noites dividem o dia em tangos e fados).

O palhaço de olhos borrados



eis o palhaço de olhos borrados
de sorriso e lábios amarelos

de cores e lembranças

de palavras que saem trôpegas
quando sorrindo abre a boca

e engole o sorriso das crianças

eis o palhaço de olhos vermelhos
de sorriso armado e nariz pontudo

de segredos embutidos no espelho

eis o palhaço de olhos engraçados
atirando risos ao público


(extasiado e mudo -
que não percebe o risco de seu fado
)

tudo o que lhe resta agora

neste camarim empoeirado

é um retrato esquecido no bolso

imagem-estanque que lhe abre portas
sempre emolduradas na estante

trancafiadas em memórias

o palhaço de olhos borrados
eis aqui o homem que chora














(The clown - Georges Rouault - 1871-1958)

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Quero antes o agora

Quero antes o toque;
a sutileza cambaleante do tato.

Quero a pele, os poros.
Quero-me sentir refeito.

Quero agora o choque.
Quero que haja conflito.

Quero a parte que me vem aos poucos;
gota a gota o suor do corpo.

A crueza de mãos se tocando,
enquanto nada é dito.

Enquanto tudo é feito,
silêncio e suspiro.

Quero antes o agora,
o instante que se demora

No exato momento em que muito houve
na lenta passagem das horas.

Quero assim o fechar dos olhos.
A marca nas costas e na alma.

Quero a palma na pele e o arrepio.
O mamilo eriçado,

a boca tremulante
e os pêlos como pavio.

Quero agora o depois.
O olhar entreaberto,

o respiro mais discreto,
a página outra vez em branco.

O sono que vem chegando,
a canseira que se vai.

Quero agora que me vá
o medo errante

o tempo inconstante,
a coisa sem lugar.


Quero antes a virada,
a aurora, a madrugada.

Quero enovelar-me a ti
e quero estar vestido.

Mais nada.

Carnavais


Vivo em transe.

Metamorfose dissimulada — agonia;

Instantes de profundas euforias

(dependuradas em varais de saudade).

Momentos tanto de guerra

Como de conformidade.

Tédio? Melancolia?

Carnavais — fantasias...

terça-feira, 25 de novembro de 2008

São poetas

São poetas
Portas abertas para o nebuloso

Cálculo indivisível de somas e perdas

Palhas
Agulhas
Mágoas maculadas
Em perfis
De águas turvas

São poetas
Páginas concretas de espaços e versos

Pétalas que se somem quando arrancadas
E postas à brisa

São pára-quedistas
Quando bombas à deriva

São poetas

Em muros cobertos de heras

Em calhas da última chuva


Poetas e seus guarda-chuvas

duas manhãs

I


a mesa posta:

há uma maçã partida sobre a mesa.
quatro partes a dividem em duas manhãs.

uma manhã rebate o sono com vontade
rebenta num estouro febril o corpo mole

devolve o que cobriu em dia tarde
impede o avanço o sonho a morte

a outra manhã sonha dias claros
(alvos panos forram a mesa posta)

(torna-se alvo a poeira nos retratos)
limpa o quarto onde sobravam portas.



II


há uma manhã quente e de luz;
há outra que não seduz.

a manhã de luz toma a cor da outra
que nasce depois

e depois de nascida, convida
a primeira a morar na cruz.

a morada não sugere lar
lá estão sem se estar

e não se vendo olham pela janela:
não vêem o tempo que passa

(e o tempo passa devagar)

as manhãs se afastam
as janelas se fecham
e as partes partidas na mesa
não são partes da sobremesa.

primeiras horas



há no vento


bater faíscas

segredos



saudades dos quintais de outrora


onde a


vida


vivia


sem mesmo se lembrar


das horas